O estudo como forma de vida: uma
travessia possível
Marcia
Maria do Nascimento
Participar dos estudos no grupo LEPED
é partilhar experiências. Embora muitas vezes o estudo pareça ação solitária,
ele não exclui o mundo: dialoga com ele, convoca outros tempos e vozes. É o estudo
como abertura, como movimento, como forma de continuar. Proporciona
experiências profundas de encontro com a palavra, com os autores e, comigo
mesma enquanto sujeito do estudo. Estudar é, para mim, muito mais que uma
atividade ligada à profissão docente. É um modo de existir com abertura, escuta
e sensibilidade.
A leitura do livro Elogio do Estudo,
de Jorge Larrosa, ao longo deste semestre, me fez repensar o sentido do estudar
em minha vida e em minha prática cotidiana, ampliou meu repertório teórico e
passou a habitar minha existência docente.
As reflexões proporcionadas me
localizam no tempo e no espaço como alguém que estuda — não como mera atividade
intelectual, mas como uma forma de ser e estar no mundo. Estudar, tal como
apresentado, resgata sua origem na palavra grega scholé, que remete a
tempo livre, paz, ócio e exercício do pensamento. Um tempo de liberdade e
dedicação, de afeto e empenho — studium, do latim, que significa
afeição, interesse, esforço, disposição espiritual e corporal.
O estudo, nesse sentido, não é apenas
tarefa ou preparação para algo. É travessia, é possibilidade de ir além do que
sou, é diálogo com autores, ideias e mundos, mesmo quando realizado no silêncio
individual, convoca o mundo em sua pluralidade de tempos e espaços. O estudo ressoa
em mim não apenas como formação, mas como forma de vida — uma experiência que
me afeta, me transforma e me constitui.
Um exercício de pensamento, que nos atravessa e nos modifica. Uma
atividade que não promete resultados imediatos, mas que transforma o próprio
modo de ser.
Nessa perspectiva, estudar é um ato de
liberdade. Uma liberdade que exige escolha, entrega e presença. Não se trata de
um fazer distraído, mecânico, mas de uma atitude ética e estética diante da
vida. Nas palavras de Larrosa, o estudo é um tempo de escuta, de silêncio, de
travessia — uma travessia que me leva para além de mim, em direção ao outro, ao
desconhecido, ao imprevisível.
Percorri doces caminhos nas páginas do
livro, dialogando com muitos autores como Aristóteles, Bourdieu e Rancière. E
partir destes, emergiram questões fundamentais: a separação entre o tempo do
estudo e o tempo do trabalho, o privilégio social do saber, a oposição entre os
homens da scholé e os homens da necessidade.
No percurso histórico, essa liberdade
originária vai sendo progressivamente apagada. Ao longo das civilizações, o
sentido do estudo foi sendo esvaziado. O estudo, antes gratuito e voltado ao
desinteresse, vai sendo capturado por lógicas utilitaristas, tornando-se
instrumento de preparação para o trabalho e para o mercado.
A escola contemporânea, tensionada
pelas exigências do neoliberalismo, transforma o estudante em trabalhador em
formação, e o estudo em aprendizagem voltada para habilidades, competências e
produtividade. Assim, perde-se o tempo livre do pensamento, e instala-se a
lógica do consumo, do desempenho e da eficiência. A gratuidade dá lugar à
utilidade; o afeto, ao cálculo. O tempo livre se transforma em tempo produtivo.
Estudar passa a ser visto como caminho para alcançar competências, habilidades
e eficiência — termos que invadem os documentos oficiais e os discursos
educacionais.
Nesse contexto, o estudante é
transformado em futuro trabalhador, a aprendizagem em instrumento para o
consumo e o estudo em tarefa útil e rentável. A educação é capturada pelo
discurso do mercado, e o tempo do pensar é comprimido pela urgência dos resultados.
O desinteresse, como forma de liberdade, é substituído pelo desempenho. Essa
visão empobrece o processo educativo e compromete a formação crítica dos
sujeitos. Como professora, tenho vivenciado diariamente essas tensões: o
desafio de manter viva a chama do estudo diante de pressões externas.
Contudo, nas reflexões propostas por
Larrosa, encontrei uma abertura, uma fresta de liberdade que resiste. Estudar,
verdadeiramente estudar, é um gesto de recusa e, ao mesmo tempo, de afirmação. Aquele
que me constitui como ser pensante, que me sustenta diante dos desafios. Frente
a recusa do imediatismo e da instrumentalização do saber. É a afirmação de uma
vida que se deixa atravessar pela palavra, pela experiência, pela
transformação. Estudar, nesse sentido, é um gesto político e vital.
O estudo como experiência de vida é um
gesto necessário em tempos de pressa, de produtividade e de esvaziamento do
sentido da educação. Quando vivido com afeto, empenho e liberdade, é capaz de
transformar, serve à formação de um sujeito que pensa, sente e resiste. Em um mundo que valoriza cada vez mais o
fazer, estudar é um modo de dizer: “ainda estou aqui, e penso”.
Este estudo que experimento no LEPED é
hoje o que me sustenta diante dos desafios da educação. Não como técnica ou
solução rápida, mas como postura existencial e ética. Compreendi que o estudo é
um ato de resistência, uma possibilidade de existir de maneira mais inteira,
mais profunda. Uma forma de estar no
mundo que me permite escutar, compreender, questionar. Estudar é resistir. É,
sobretudo, continuar.
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